Se me ponho a trabalhar
e escrevo ou desenho,
logo me sinto tão atrasado
no que devo à eternidade,
que começo a empurrar p'ra diante o tempo
e empurro-o, empurro-o à bruta
como empurra um atrasado,
até que, cansado, me julgo satisfeito;
e o efeito da fadiga
é muito igual à ilusão da satisfação!
Em troca, se vou por aí
sou tão inteligente a ver tudo o que não é comigo,
compreendo tão bem o que não me diz respeito
sinto-me tão chefe do que é fora de mim,
dou conselhos tão bíblicos aos aflitos
de uma aflição que não é minha,
dou-me tão perfeitamente conta do que
se passa fora das minhas muralhas
como sou cego ao ler-me ao espelho,
que, sinceramente, não sei qual
seja melhor,
se estar sozinho em casa a dar à manivela do mundo,
se ir por aí a ser o rei invisível de tudo o que não é meu.
Almada Negreiros, escrito em 1941, In Obras Completas-Poesia 4(1971)
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